terça-feira, 19 de agosto de 2008

Ser uma alternativa

Lamento voltar ao assunto da crónica de ontem mas desta vez não resisto.
Tal como referi, o livro "Ébano" de Kapuscinski descreve um cenário surpreendentemente próximo daquele que vejo actualmente, apesar da distância de meio século. Ontem, pouco depois de publicar a mensagem "Prevenção", fui ler mais um pouco e deparei-me com a seguinte passagem:

Vive-se para o instante, para o momento, cada dia constitui um novo obstáculo, que se ultrapassa com esforço; o poder da imaginação não vai além do dia de hoje, ninguém faz planos, ninguém tem sonhos.

Um dos resultados de ler isto foi desanimar um pouco nesta minha senda de manter o blogue. Ali está o que eu quero dizer, o que eu quero relatar! Quanto mais leio, mais tenho a sensação de estar perante um plágio por antecipação (o que não deixa de ser um estranho conceito).
Outro resultado foi ficar a pensar na última parte da frase: ninguém tem sonhos. Decerto sou eu que estou a exagerar, mas conseguem imaginar as consequências desta forma de viver? Estar aqui ou ali é igual, a distância para o objectivo é a mesma, é nenhuma, não existe. Ir ou não ir, ter ou não ter, apenas indicam uma alteração de estado. No fundo, é-se uma coisa simplesmente porque não se é outra qualquer. É-se uma alternativa toda a vida, nunca uma escolha!
Talvez sobreviver seja já um objectivo suficiente. Talvez ter outros objectivos , pessoais ou profissionais, seja um luxo de quem não tem de se preocupar verdadeiramente com sobreviver. Kapuscinski de novo:

Carregam pedaços de chapa, tábuas, placas finas, plástico, cartão e pedaços de carroçaria à cabeça.

É porventura demasiado lirismo, mas acho que será um grande salto quando na cabeça os sonhos substituirem os pedaços. Não faz tão mal à coluna, e é um bálsamo para a alma!

2 comentários:

Anónimo disse...

O facto de,passados praticamente 50 anos,alguns dos teus relatos parecerem retirados do livro de Kapuscinki só prova que realmente pouco,para não dizer nada,mudou na maneira de encarar o dia a dia do povo africano.E se calhar deve haver exemplos ainda mais flagrantes do que a Costa do Marfim.
O livro "Ébano" parece-me estar para África como o livro "Capitães da Areia" de Jorge Amado está para a zona do Brasil que nele é descrita.Podiam ambos ser escritos agora que pouco tinha que ser mudado, apesar das dezenas de anos que qualquer um deles já tem.Ou melhor o livro de Kupuscinki foi publicado há meia dúzia de anos mas baseado em crónicas de há 50 anos,o de Jorge Amado é mais coincidente com os factos reais lá relatados embora ficcionados.
Portanto,uma vez que não tens uma varinha mágica para puderes mudar alguma coisa (se isso fosse possível seria bem aceite?)continua a absorver e a transmitir-nos toda essa amálgama de cores e sentimentos de que é feito o mundo africano.Até agora tens-no feito tão bem que até nem precisamos de ler o "Ébano" para nos sentirmos um pouco mais identificados com a realidade africana.

Hoje estiquei-me.O cronista parecia eu.

Um grande abraço.

Moura disse...

Não é essa a marca de um país com margem para crescer? Do dito 3º mundo? A troca da chapa e do plástico pela vontade de mais levará ( nesta sociedade onde o ter toma muitas vezes o papel principal ) a uma revolução e ao afastamento da atitude passiva de ver a vida passar.

E caro amigo, a sensação de "plágio por antecipação" não te deve fazer perder a vontade do relato mas reforçá-la com a certeza de o fazeres tão bem.

Abraço